27/03/2007

Introdução: Será o protagonismo uma questão estatística?

Aparentemente, distinguir, numa narrativa, as personagens quanto ao seu relevo no interior da trama é um mero exercício de explicitação duma evidência que ressalta do simples percurso ocular por entre as linhas da história, assistido pela estatística da aparição nominal, donde resulta óbvio, de acordo com esta perspectiva (prevalentemente) quantitativa, que: o protagonista será o vencedor das nomeações; secundárias serão todas as personagens que, embora não dominando o palco, quando o pisam provocam, com o seu peso, uma oscilação assinalável; figurantes, a massa envolvente, parcamente descrita senão com pintalgadas soltas sobre a tela das cenas onde, emocionada, participa violenta (nos conluios da revolta) ou apaixonadamente (como se num uníssono suspiro de comoção).
Porém, sobra nesta abordagem o carácter insólito que nem a conveniência do filão dramático pode abafar que é o da complexidade da vida que as letras rabiscam. Com efeito, se uma narração discrimina as suas personagens não apenas nominalmente mas, e sobretudo, na infame acepção das gentes por que umas emergem como empolados cavalheiros de nobres roupagens e não menos altaneiras vontades, ao passo que outras, indigentes duma adjectivante simpatia, surgem rudes, disformes, moribundos de papel, não pode a imaginação ser cúmplice ao ponto de não discorrer que nenhum protagonista o seria se no parágrafo seguinte não saltasse uma mó espumando fealdade e fúria e ódio tais que àquele não restaria senão uma qualquer heroicidade que o fizesse notório o bastante para merecer do leitor o esforço de erguer o sobrolho de espanto.
O que, quanto a nós, distingue radicalmente um dos demais prende-se com a sua capacidade de, entre os protagonismos que as vidas várias necessariamente comportam (já que tanto o dito nobre cavaleiro de nobres vontades como as gentes que refilam a sua plana descrição comungam, na narração como na respiração, dessa incontornável exigência de existirem nominalmente, i. é, de serem tais, pessoalmente, não obstante a proliferação ou míngua de caracteres; enfim, todos somos protagonistas do cenário de pele e osso que nos toca), estabelecer com cada um uma qualquer relação (de asco ou apreço), como se fora pedra de tropeço dos muitos viandantes da história [cf. Daniel Marguerat, Yvan Bourquin, Cómo leer los relatos bíblicos, Iniciación al análisis narrativo, Santander, Sal Terrae, 2000, pp. 95-102].

Para exemplificar quanto vamos aqui dizendo, apresentamos dois casos narrativos consideravelmente diversos:


À espera de Godot,
obra-prima do dramaturgo, romancista e
poeta irlandês Samuel Beckett (1906-1989),
vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1969.



Being John Malkovich (1999),
um artifice de fantoches descobre um portal no seu escritório que lhe permite entrar na mente e vida de John Malkovich durante 15
minutos, o que considera como oportunidade para criar um pequeno negócio. Até que o próprio John Malkovich entra nesse portal…


No primeiro caso, a personagem que convoca a atenção dos espectadores como das personagens é esse ilustre ausente, Godot. Curiosamente, se acaso a determinação do protagonismo dependesse da presença cronometrada, decerto poderíamos acusar Samuel Beckett de intrujice. Contudo, e sem que nos detenhamos nos meandros de tal enredo, basta-nos reter essa imagem fundamental do quanto a primazia do protagonismo cénico (senão mesmo existencial…) resulta não da exposição mas da evocação comum dessa mesma condição expectante.
Já no segundo, apercebemo-nos da explosão do protagonismo, quando todas as personagens papagueiam instrumentalmente o nome daquele primaz.
Com isto procurámos evidenciar, em jeito de aproximação introdutória, o quanto o exercício de destrinça do papel dos personagens é tarefa delicada, não confundível com uma (simplista?) leitura quantitativa.
Posto isto, e ainda antes de nos debruçarmos sobre a personagem que elegemos dentre o elenco das (imensas) secundárias que povoam o livro dos Actos como protagonista deste breve estudo, apontaremos algumas questões que de certo modo justificam tal opção (porventura inesperada?), a saber: 1. numa narrativa onde as personagens surgem quase a cada parágrafo para desaparecer no seguinte, como determinar a preponderância entre elas?; 2. qual a razão que terá motivado o autor a apresentar um tal elenco de personagens?

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