13/04/2007

2 EM 1: UM EDIFÍCIO CASA-PRISÃO

A prisão de Filipos, onde Paulo e Silas são detidos, comporta no andar de cima a casa do carcereiro. É estranho para o nosso mundo actual conceber uma casa com uma prisão no rés-do-chão, por isso, como explicá-lo?
Se considerarmos que o trabalho no mundo antigo estava sempre intimamente ligado ao contexto doméstico, não é de espantar que a habitação do carcereiro fosse anexa à prisão.
Senão reparemos. Era corrente nas pequenas cidades e vilas, casas com um espaço dedicado à compra e venda de produtos ou serviços, denominadas tabernae. Nas grandes superfícies urbanas, estas lojas apareciam contíguas umas às outras, ao longo das ruas da cidade, sustentando no piso superior um outro andar que servia de residência. As pessoas que viviam neste tipo de casas eram de baixa condição social. [Cf. RICHARDSON, Peter, Towards a Typology of Levantine/Palestinian Houses, Journal for the Study of the New Testament, 27, 1 (2004), p. 60.]
Se fizermos uma transposição desta tipologia doméstica para o contexto da perícope de Actos 16, 23-40, não é difícil imaginar – especialmente se atendermos ao facto de Filipos ser uma cidade relativamente grande para a época – uma cadeia no lugar da loja, tendo por cima o espaço habitacional.

As profecias de Ágabo

No livro dos actos dos apóstolos, Lucas fala de um certo profeta Ágabo, profeta do primeiro século, e daquilo que ele predisse pelo Espírito Santo em duas ocasiões diversas. Este é o personagem que descubro no relato lucano, a quem atribuo particular importância e que procurarei desenvolver.

Em Actos 11, 27-28 Lucas conta-nos que " Nesses dias, uns profetas desceram de Jerusalém a Antioquia. Um deles, chamado Ágabo, ergueu-se e, sob a inspiração do Espírito, predisse que haveria uma grande fome por toda a terra. Foi a que sobreveio no reinado de Cláudio”. Assim, vemos Ágabo, como profeta que recebeu uma palavra de sabedoria que dizia respeito a uma grande fome que viria sobre toda a terra.

Já numa outra ocasião, o profeta Ágabo predisse pelo Espírito Santo o que deveria acontecer a Paulo em Jerusalém, quando este ainda se encontrava em Cesaréia.
Conta Lucas em Actos 21,10-11: “Como lá passámos bastantes dias, desceu da Judeia um profeta de nome Ágabo, o qual foi ter connosco, pegou no cinto de Paulo e, ligando-se de pés e mãos, disse: «Isto diz o Espírito Santo: 'O homem, a quem pertence este cinto, será ligado assim, em Jerusalém pelos judeus, e eles entregá-lo-ão às mãos dos pagãos».

Deste modo percebemos que Deus fez saber a Paulo, através do profeta Ágabo, que os Judeus o iriam prender em Jerusalém e entregar às mãos dos Gentios. Por isso, quando em Jerusalém, os Judeus acabaram por prender Paulo no templo e lhe bateram com o objectivo de o matar, Paulo já sabia, de antemão, que os Judeus não o matariam naquela ocasião porque eles o iriam entregar aos Gentios.

Conclusão: João, figura do apostolado?

O João dos doze é uma figura paradigmática. Com efeito, embora estando presente, a sua presença não anula a dos demais, antes assiste a aparição alheia.
João é bem o protagonista da discrição (nos gestos como nas palavras com que secunda os seus interlocutores) ou, diria, o protagonista que promove o protagonismo dos outros [o que é, de certa forma (assim nos parece), uma imagem do apostolado – serviço maturador das comunidades], donde resulta essa insólita nomeação fugaz por que João, emergindo como personagem cimeira, rapidamente desaparece de cena, dando lugar aos demais protagonistas que como ele mergulharam nesse Nome. Não espanta, pois, que João (como, de resto, muitos dos demais intervenientes nos Actos) seja uma figura provisória no seio da narração, já que esta parece estar menos interessada em biografar vidas que a vida na Vida (aí onde todos e cada um assumem um nome, gozando com os demais dessa alegria de se achar pronunciado por um outro, Maior, supranominal, pois que rompe com as sílabas de Si…).
[Em jeito de apontamento: seria, porventura, interessante confrontar a imagem do João dos Actos com o João dos demais escritos neotestamentários, com vista a uma caracterização mais alargada.]

Sobre o apostolado

1. Evangelho de Lucas: os doze escolhidos, que partilham com Jesus os seus feitos (cf. Lc 9,10), são por Ele chamados apóstolos (cf. Lc 6,13): comensais nas horas delicadas (cf. Lc 22,14); testemunhas dos momentos decisivos (cf. Lc 14,20).

2. Actos dos Apóstolos: os apóstolos (escolhidos e instruídos por Jesus – cf. Act 1,2 –), pregadores emocionantes (cf. Act 2,37) e educadores (cf. Act 2,42), fautores de gestos extraordinários (cf. Act 2,43; 4,43; 5,12), lideravam as comunidades (arbitrando, inclusivamente, as situações delicadas – cf. Act 15,2-22 –), animados que estavam pelo Espírito (cf. 6,6; 8,18). Assim, geriam as colectas conforme as necessidades (cf. Act 4,35), promoviam o anúncio do Reino (cf. Act 8,25; 11,1; 16,4), mesmo sofrendo perseguições várias (às mãos de judeus e gregos – cf. Act 5,12-26; 8,1; 14,4), obedientes à vontade de Deus (cf. Act 5,29). Aparecem, então, como um grupo coeso, concentrado, inicialmente, em Jerusalém (cf. Act 8,1), decidindo em diálogo com os Anciãos (cf. Act 15,2-16,4).

3. Continuidade e descontinuidade no uso do termo: a interrogação maior quanto ao uso do termo tem que ver não tanto com a continuidade do seu sentido mas antes com a desproporção do emprego, compreensível quando considerada a função que os mesmos desempenhavam no seio das comunidades. Com efeito, o primeiro momento do apostolado dos doze consistiu precisamente na sua convivência privilegiada com Jesus. Só posteriormente é que assumem uma relevância maior pois que as comunidades carecem do seu testemunho cordial (autorizado). No entanto, a sua presença não as esmaga, mas antes serve os acontecimentos prodigiosos que nelas têm lugar.

Sobre os Doze

1. Evangelho de Lucas: escolhidos do grupo alargado dos discípulos (cf. Lc 6,13), acompanham Jesus de perto no seu anúncio do Reino (cf. Lc 8,1), recebendo d’Ele poder e autoridade para gestos portentosos (cf. Lc 9,1). Contudo, embora gozando duma proximidade tal que lhes permite discutir estratégias, não estão livres da mesma incompreensão que afecta os demais discípulos (cf. Lc 9,12; 18,31), ao ponto de, discordes (de cegos), se Lhe oporem (cf. Lc 22,3.47). Finalmente, são eles que sentem o coração arder à vista do ressuscitado (cf. Lc 24, 9.33).

2. Actos dos Apóstolos: o grupo decide retomar o número inicial (porventura por intuir um sentido escatológico nessa constituição dodecaédrica; convém, no entanto, confrontar Act 1,26 e 2,14 quanto ao lapso de tempo entre a eleição e a actualização do nome). Enquanto em Jerusalém, parece ter uma função de arbitragem, radicada na Palavra, no seio da comunidade que reclama pela máxima disponibilidade (cf. Act 6,2).

Sobre o discipulado

1. Evangelho de Lucas: O discipulado inaugurado por Jesus está marcado pela crise. Com efeito, embora inscrito no quadro tradicional do seguimento iniciático, o discipulado jesuânico difere dos demais (seja do da escola farisaica, seja, inclusive, do de João Baptista), tanto no que concerne às refeições (veja-se o debate acerca: da comensalidade com os pecadores – cf. Lc 5,30 –; do jejum – cf. Lc 5,33 –), como até quanto a uma certa concepção da observância do preceito sabático (cf. Lc 6,1). O selo da crise atinge não apenas o domínio externo mas toca sobretudo o íntimo do discípulo, confrontado que está com a permanente confusão ante as palavras desconcertantes de Jesus (cf. Lc 8,9; 9,18ss; 9,54s; 18,15ss). De facto, o discipulado de Jesus progride ao ritmo da incompreensão por que os discípulos são confrontados com o sentido cru do seguimento (despojamento, simplicidade pueril – cf. Lc 6,20; 6,40; 12,22; 14, 26s; 14,33). No entanto, tal opacidade inicial vai sendo digerida na intimidade do encontro com Jesus, já que os discípulos, ao contrário da mó (que se acotovela ruidosamente para ouvi-l’O – cf. Lc 7,11 –), vagueiam na sua companhia, escutam-Lhe o significado das parábolas (cf. Lc 8,9), assistem (e neles participam, em seu nome – cf. Lc 10, 17 –) aos seus gestos surpreendentes (cf. Lc 9,14ss; 9,36), aprendem-Lhe a oração (cf. Lc 11,1). Porém, a crise atinge o ponto apical quando aqueles são confrontados com a questão radical: afinal, quem é Jesus? (cf. Lc 9,18), cuja resposta só o convívio profundo pode descobrir. Em suma, é discípulo de Jesus aquele que, mesmo na convulsão de sentimentos que se sucedem, da bruma da incompreensão ao espanto genuíno, persiste no seu encalço, percorrendo as mesas várias que o apetite do encontro suscita.

2. Actos do Apóstolos: Aqui, são discípulos os que crêem, vivendo tal experiência na comunidade (onde eram chamados a intervir – cf. Act 6,2.7), não obstante as perseguições (cf. Act 9,1) sofridas (simultaneamente dolorosas e fortalecedoras – cf. Act 14,22), ou mesmo os conflitos internos (cf. Act 6,1), no seu esforço de generosidade (cf. Act 9,36) e zelo (cf. Act 14,20; 19,30; 21,4). A sua alegria exalava a confiança na Presença d’Aquele cujo nome iam assumindo (cf. Act 11,26), cristificando-se.

3. Continuidade e descontinuidade no uso do termo: De certo modo, a evolução do termo (quanto ao uso) tem um fundo eminentemente existencial, que corresponde ao percurso desde a interrogação fontal quem é Jesus? (cf. Lc 9,18) à integração da resposta segundo a forma ser como Cristo (cf. Act, 11,26). Assim, se o evangelho traduz insistentemente a preocupação do encontro pessoal com Jesus (na forja do convívio onde as dúvidas são aplacadas pela companhia), o livro dos Actos ilustra já a vida dos que vivem como Cristo.

Discípulos, Doze (Onze) e Apóstolos: proximidade e distância

Para melhor respondermos às questões anteriormente levantadas, pareceu-nos conveniente enquadrá-las no seio da problemática do discipulado - apostolado, como forma de ilustrar o quanto a discreta relevância (ou melhor, a relevância na discrição) radica no ser discípulo (e, sobretudo, no ser apóstolo).
Com efeito, o protagonismo apóstolico, mesmo quando desassombrado no testemunho em ambiente de perseguição, porque provindo desse momento inaugural de todo o protagonismo (o da nomeação - ou, diríamos, da (pro)vocação), suspira pelo instante do eclipse (ou do abraço) onde Outro toma a palavra por entre as palavras dos outros...

Assim dispostos, os textos do Evangelho de Lucas e dos Actos surpreendem-nos quanto ao uso dos termos discípulo(s) e apóstolo(s), decrescendo o primeiro, ao passo que o segundo conhece um considerável relevo.
Tendo como pano de fundo a questão da relação entre João e os demais discípulos e apóstolos, começaremos por esboçar uma aproximação quanto ao sentido dos termos discípulo, doze (onze) e apóstolo, de acordo com as seguintes interrogações: 1. terão o mesmo sentido no evangelho lucano como nos Actos?; 2. a que se deve a desproporção quanto ao uso num e noutro livros?; 3. (finalmente) como se enquadra João no seio desse(s) grupo(s)? e em que medida os representa (a representar!) paradigmaticamente?

Breve apresentação de João

1, 13: Quando chegaram à cidade, subiram para a sala de cima, no lugar onde se encontravam habitualmente. Estavam lá: Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelota, e Judas, filho de Tiago.

Contexto


O grupo (do qual fazem parte algumas mulheres – cf. 1,14 –) reúne-se em Jerusalém após a visão de Jesus ascendido.
O regresso de Cristo aos céus como que os convoca para o regresso ao espaço onde «se encontravam habitualmente», qual recanto da memória onde os medos (da perseguição, da dúvida, da desorientação, da insanidade…) são superados.

Elementos caracterizadores

João integra o grupo dos videntes surpreendidos pela crise da gravidade à vista da leveza de Cristo. É nomeado em segundo lugar [o que indiciará, paradoxalmente, a sua relevância mas ainda a sua discrição].

3, 1: Pedro e João subiam ao templo, para a oração das três horas da tarde.
3, 3: Ao ver Pedro e João entrarem no templo, pediu-lhes esmola.
3, 4: Pedro, juntamente com João, olhando-o fixamente, disse-lhe: «Olha para nós.»
3, 11: E, como ele não deixasse Pedro e João, todo o povo, cheio de assombro, se juntou a eles sob o chamado pórtico de Salomão.

Contexto


A subida ao templo evidencia a convivência entre o judaísmo e o cristianismo nascente.
Porventura a diferenciação brotará, precisamente, da intuição do alcance do sacrifício vespertino da hora nona (cf. Ex 29, 39-42; Lc 1, 8-10; Eclo 50, 5,21).

Elementos caracterizadores

João acompanha Pedro, seguindo com ele até ao templo para a oração vespertina (pois que se mantinham afectos ao húmus tradicional da fé).
Nisto, foram vistos por um aleijado de nascença que os procurou (aparentemente menos por reconhecer neles uma qualquer diferença específica e mais por serem dois possíveis benfeitores dentre a mó que ali acorria) a ver se deles recebia uma esmola. Ao invés disso, recebe um desconcertante convite.
João surge quase como um actor especular, agente da conformidade. O que faz, fá-lo secundando Pedro, nos gestos como nas palavras, ao ponto de se confundir com ele.

4, 13: Ao verem o desassombro de Pedro e de João e percebendo que eram homens iletrados e plebeus, ficaram espantados. Reconheciam-nos por terem andado com Jesus,

Contexto

Como eles inflamassem as gentes dum espanto insurrecto, as autoridades judaicas encarceraram-nos com o propósito de os interrogar.
Adivinha-se, aqui, o desconforto presente entre o judaísmo tradicional e aquela impúbere facção.

Elementos caracterizadores

Pedro e João pregam ousadamente, não obstante a sua condição plebeia (e iletrada).
A eloquência por que se fazem notados parece resultar da convivência com Jesus.

4, 19: Mas Pedro e João retorquiram: «Julgai vós mesmos se é justo, diante de Deus, obedecer a vós primeiro do que a Deus».

Com efeito, a obediência a Deus parece ser bem eco daquele convívio, enquanto acontecimento existencial cimeiro, prioritário.
A evocação deste argumento (retomado em 5,29 e 5,38s) parece traduzir uma preocupação radical no seio do debate entre os discípulos de Jesus e as autoridades judaicas: num contexto turbulento, como obedecer a Deus? Mais: quais as instâncias que podem garantir um caminho autêntico (ou seja, obediencial)?
Esta interrogação, profundamente judaica (i. é, inscrita nos meandros da memória identitária de Israel), situa os discípulos de Jesus na esteira desse mesmo ambiente teológico. De facto, para eles é claro que o seguimento de Jesus corresponde ao autêntico cumprimento da vontade de Deus.

8, 14: Quando os Apóstolos, que estavam em Jerusalém, tiveram conhecimento de que a Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João.

Contexto

Estalada a perseguição [contra os helenistas?], muitos fugiram de Jerusalém.
Filipe, que também abandonara Jerusalém, chegou a uma povoação da Samaria, começando, aí, a anunciar o Evangelho.

Elementos caracterizadores

João é enviado (a par de Pedro) pelos Apóstolos sitos em Jerusalém para a Samaria.

8, 17: Pedro e João iam, então, impondo as mãos sobre eles, e recebiam o Espírito Santo.

O motivo da sua presença é, eventualmente, desconcertante. Com efeito, aqueles samaritanos «somente haviam sido baptizados em nome do Senhor Jesus» (8,16).
A eficácia pneumática do gesto de Pedro e João não parece, contudo, residir neles mesmos (já que Filipe, sendo um dos Sete, fora também ministro do espanto – cf. 8, 4-8 –), mas sobretudo no alcance comunional do gesto que promovem (cf. 15, 8-9; 19, 3-7).
Se até aí Jerusalém e Samaria estavam de costas voltadas, agora, e por meio daqueles (mandatados por Jerusalém), os laços eram restabelecidos, ficando uns e outros envolvidos por essa mesma respiração que mana daquele Nome.

12, 2: Mandou matar à espada Tiago, irmão de João,

Do elenco que apresentamos resultam, pelo menos, duas grandes questões: 1. por que surge João, uma das figuras cimeiras dos Onze (cf. 1, 13), descrito sempre de forma secundária?; 2. por que lhe perdemos, subitamente, o rasto?

12/04/2007

Gamaliel (parte II)

Mais do que afirmações concretas sobre este misterioso e notável personagem secundário de Actos, são as dúvidas e questões que surgem no nosso horizonte, após uma tentativa de estudo mais detalhado.
Gamaliel (e sua família) é considerado pertencente à tribo de Benjamim e foi chefe de uma importante escola rabínica em Jerusalém, tendo nela sido mestre de S. Paulo, tal como ele próprio o afirma em Act 22,3. É considerado o autor de muitos estatutos legais e teve dois filhos: Simeão e uma filha casada pelo sacerdote Simon bem Nathanael. Se é certo que estes factos anteriormente apresentados podem ser tidos como factos adquiridos, contudo não disfarçam as muitas dúvidas que Gamaliel e sua intervenção suscitam. A este respeito, muitos exegetas defendem que tenha sido ele a presidir ao Sinédrio aquando da comparência de Jesus. Mas esta tese contraria os Actos, na medida em que estes referem que Gamaliel se tratava apenas de um simples membro do mesmo. Também no que se refere às palavras que dirige ao Sinédrio existem muitas dúvidas, sobretudo, à volta da sua autoria: tratam-se verdadeiramente de palavras professadas por Gamaliel ou é apenas um discurso colocado por Lucas na sua boca? No meu entender a resposta não é importante. O conteúdo e significado das suas palavras, dando legitimidade à comunidade nascente cristã é que são decisivos.

11/04/2007

De Lúcio a Lucas (tal como de Saulo a Paulo)

A profusão de nomes e lugares e uma cronologia confusa, torna problemática qualquer investigação dos Actos dos Apóstolos. E é o caso da identificação de Lucas, do próprio autor dos Actos. Lucas escreveu com uma modéstia frustrante, não dando informação sobre si próprio. E, no entanto, num relato tão extenso, algum indício deveria surgir.
É indubitável que Lucas acompanhou Paulo nas suas viagens. A descrição do naufrágio no Mediterrâneo, por exemplo, tem pormenores que só podem ter sido escritos por uma testemunha ocular. E Lucas deixa de usar “eles” para usar os “nós”, a partir de 16,10 (estavam em Tróade), sendo óbvia a sua presença em parte das missões de Paulo. Lucas permaneceu junto de Paulo até aos seus últimos dias em Roma, como testemunha o próprio Paulo.
Nos Actos não se nomeia Lucas, mas em 13,1-3 fala-se dum Lúcio (!): “Havia na igreja, estabelecida em Antioquia, profetas e doutores: Barnabé, Simeão, chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaen, companheiro de infância do tetrarca Herodes, e Saulo”. Este Lúcio de Cirene (Cirene era na altura um importante centro judeu) deve ser Lucas, por uma única vez referido em Actos (tal como Saulo é Paulo). Lucas é nome latino, no grego Loucas, versões simplificadas de Lucius ou Lucanus.
Nas cartas de S. Paulo referem-se ambos os nomes Lúcio e Lucas. Veja-se:
Cl 4,14 Saúda-vos Lucas, o caríssimo médico, bem como Demas.
2 Tm 4,10 pois Demas abandonou-me. Preferiu o mundo presente…
2 Tm 4,11 Apenas Lucas está comigo.
Na carta aos Romanos S. Paulo fala em Lúcio: Rm 16,21 Saúda-vos o meu colaborador Timóteo, assim como os meus concidadãos Lúcio, Jasão, e Sosípatro.Aqui surge um problema, que talvez os colegas conhecedores do grego possam resolver: Paulo era de Tarso mas Jasão era de Tessalónica e Sosípatro de Berea, para não falar de Lúcio que era de Cirene, logo concidadãos é uma tradução errada. Noutras Bíblias surge “parentes”, em inglês “kinsmen”. Lucas deve ser o nome cristão de Lúcio, e, pela sua lealdade a Paulo, pode ser, de facto, seu familiar.

10/04/2007

Actos dos Apóstolos – Breve descrição

Nos Actos, Lucas descreve a lenta expansão do cristianismo e a sua transformação, desde um pequeno movimento ainda dentro do judaísmo, até uma religião universal: dos judeus aos gentios; de Jerusalém a Roma; e daí, com os recursos dum Império, para o mundo então conhecido. Na base desta transformação esteve o pequeno grupo de galileus, os discípulos de Cristo, liderados por Pedro e assistidos pelo Espírito Santo, e também Paulo, um judeu fariseu erudito de Tarso, cidadão romano, convertido por uma visão de Jesus Cristo.
Era praticamente impossível para os primeiros cristãos-judeus aceitar os gentios, porque, assim, infringiam a lei de Moisés, i.e., aceitar o baptismo de incircuncisos e, até, a partilha de refeições. Jesus Cristo, subira ao Céu, mas continuou presente, e duas impressivas intervenções divinas foram necessárias: sobre Pedro, que deveria dar testemunho sobre a descida do Espírito Santo sobre judeus-cristãos e igualmente sobre gentios; e sobre Paulo, cego pela visão por 3 dias, que se tornou no grande apóstolo dos gentios e fundador da Igreja Universal.

Estevão, desenvolvimento do personagem

Acusado de blasfemar contra Moisés e contra Deus, é conduzido ao Sinédrio depois do motim gerado entre o povo, os anciãos e os escribas.
Alguns da Sinagoga, dos cireneus e alexandrinos, dos da Cilícia e da Ásia discutiram com Estevão, e não podendo argumentar com " a sabedoria e ao Espírito com que ele falava" Act. 6, 10, subornaram alguns para dizerem que blasfemara.
Perante o Sinédrio, Estevão faz um longo discurso, e "todos os membros do Sinédrio, com olhos fixos nele, tiveram a impressão de ver em seu rosto o rosto de um anjo" Act. 6, 15
Estevão responde às acusações de blasfémia com um relato da história do povo de Abraão e da sua relação com Deus.
Fala dos Pais Abraão, Isaac e Jacob, conta a história de José e o cativeiro no Egipto, o nascimento de Moisés e a libertação do cativeiro, os quarenta anos no deserto, o cativeiro na Babilónia, a fundação da casa de David e a construção da casa do Senhor por Salomão.
Estevão mostra aos seus acusadores, que apesar de cristão helenista, é conhecedor e herdeiro da Aliança do povo de Israel, e é nessa qualidade que fala a todas as nações e não só aos hebreus.
Acusa-os de serem "incircuncisos de coração e de ouvidos" Act. 7, 51.
Eles, tal como os seus pais resistiram ao Espírito Santo, "mataram os que prediziam a vinda do justo"Act. 7,52. "Vós, que recebestes a Lei por intermédio de anjos, e não a guardastes!"Act. 7, 53
Condenado pelo que faz, condenado pelo que diz, condenado pelo que é, Estevão é o primeiro mártir cristão que marca definitivamente a separação dos judeus e a realidade da Igreja de Cristo.
Estevão, por outro lado, introduz um personagem principal que vai passar a ser o protagonista do resto do relato de Actos, Paulo.
É "aos pés de um jovem chamado Saulo"Act. 7, 58, que o seu manto é colocado quando é apedrejado até à morte.
"Saulo estava de acordo com a sua execução"Act. 8, 1, e enquanto Estevão é sepultado "Saulo, devastava a Igreja: entrando pelas casas, arrancando homens e mulheres e metia-os na prisão"Act8, 3.

Actos dos Apóstolos em mais ou menos 15 linhas

Em Actos, é-nos relatado o percurso e missão dos Apóstolos depois da Ascenção de Cristo.
O Senhor Ressuscitado, marca-os com a missão que lhes destina, dizendo: "Mas recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e a Samaria, e até aos confins da terra".Act. 1, 8
O autor de Actos apresenta-nos os Apóstolos e o substituto de Judas, Matias. A missão dos 12 é relatada com detalhes das peripécias por eles sofridas no decurso da sua missão.
A partir dos discursos de Pedro e das situações por ele vividas, vai-nos relatando a história dos restantes Apóstolos.
O autor apresenta mais 7 personagens, que irão participar também no relato e na missão dos 12.
A partir daí, um tem lugar de destaque, Estevão.
E é Estevão que introduz o próximo personagem, à volta do qual se irá desenrolar o resto do relato, Saulo, mais tarde Paulo.
Em Act. 9, temos a descrição da vocação de Saulo na estrada de Damasco e os seus primeiros passos no anúncio de Jesus.
Segue-se 10, 11 e 12 em que atenção da narrativa continua focada em Pedro e na sua ligação aos restantes Apóstolos.
Paulo surge no fim do cap. 12, e em 13 inicia-se a descrição da sua missão, em alternância com a de Pedro, (dá-se a controvérsia em Antioquia, com Pedro e Paulo como protagonistas principais. E o discurso de Pedro em Act.15 encerra a sua presença no relato), mas Paulo vai ganhando progressivamente o protagonismo do relato e passa a ser o elo de ligação aos restantes personagens. A partir de agora, Paulo é o centro do relato e é através dele, dos seus actos, discursos e atribulações que nos é narrada a história e resultados da sua missão.
A história da Igreja nascente e o proceso de evangelização por todo o mundo conhecido, é-nos narrada agora a partir de Paulo.

08/04/2007

Relação de personagens

Relação de personagens +/- secundários
“eleitos” pelo grupo académico
participante e actuante em "Cristianismo das origens"

· Silas – Act 15, 22 (16,6; 17,4; 18,5) 2x
· Priscila e Áquila – Act 16, 3-5
· Sobrinho da Paulo– Act 23, 16
· Félix e Drusila – Act 24, 24-27
· Dâmaris – Act 17, 34
· Barnabé – Act 4, 36-37 3x
· Públio – Act 28, 7-10
· Nicanor – Act 6, 3
· José, chamado Barnabé – Act 4, 36 (9,27; 11, 19-26; 15, 35-41)
· Gamaliel – Act 5, 34-35 (22, 3) 3x
· Tabita – Act 9, 36-42
· João, chamado Marcos – Act 12, 12
· Filipe – Act 6, 25 (8, 4-13. 26-40; 21,8)
· Apolo – Act 18, 24-28
· Herodes – Act 4, 27
· Cornélio, centurião – Act 10, 1-2 3x
· Agripa, rei de Judá – Act 25, 13 (e mais 12 vezes – pelo menos) 2x
· Ananias – Act 9, 1-19
· Simão, o curtidor – Act 9, 43 (10,5)
· Eunuco etíope – Act 8
· Timóteo – Act 16, 1-3
· Apolo – Act 18, 24-25 2x
· Lídia – Act 15, 40 (16,11)
· O aleijado – Act 3, 1
· A escrava, que tinha um espírito pitónico – Act 16, 16-18
· Rode – Act 12, 12
· Demétrio – Act 19, 23
· Carcereiro sem nome – Act 16, 23-40
· Família e amigos de Cornélio – Act 11, 11-12
· Bar- Jesus – Act?