19/05/2007

Impressões da Atenas de Dâmaris no séc. XX

Abril – Maio 1964

Caríssimo Jorge

[...]
Não sei se recebeu o meu postal da Grécia. [...] Não tento descrever-lhe a Grécia nem tento dizer-lhe o que foi ali a minha total felicidade. Foi como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas e acordasse no primeiro dia da criação num lugar desde sempre pressentido.
Sobre a Grécia só o Homero me tinha dito a verdade: mas não toda. O primeiro prodígio do mundo grego está na Natureza: no ar, na luz, no som, na água. É uma natureza mitológica onde as montanhas e as ilhas têm um halo azul que não é imaginado, mas sim fenómeno físico objectivo que segundo me disse o Padre Antunes (que aliás imprevistamente encontrei, na palácio Ducal de Veneza numa exposição maravilhosa do Carpaccio) já era um fenómeno notado e discutido na antiguidade. Sob o sol a pique, numa claridade azul indescritível, o ar é tão leve que nos torna alados e o menor som se recorta com uma inteira nitidez. As enormes e constantes montanhas povoam tudo de solenidade. Cheira a resina e a mel e há uma embriaguez austera e lúcida. Mas tanto como a natureza - e ligada à natureza - espantou-me a incrível religiosidade de tudo. Depois da Acrópole, São Pedro de Roma pareceu-me mundano e fútil e pesado. É uma religiosidade tão nua, tão funda, tão intensa, tão solene como eu nunca tinha encontrado. É uma atitude de ligação com o real que está presente todas as coisas. Só em Ésquilo se pode encontrar um reflexo deste espírito que está presente, inteiramente presente, nas ruínas despedaçadas dos templos gregos. Gostaria de lhe contar tudo o que vi, desde o sabor espantoso do vinho com resina que me entonteceu logo na primeira noite da minha chegada, até à água gelada que bebi num dia de intenso calor nas montanhas de Delfos. Mas sinto que só sei falar mal disto tudo.

Aqui minha fala se quebra como a quem
Viu em sua frente um deus visível
E vai sem imaginação, perdidas as palavras
No real indicível

O que há de extraordinário ali é que o mistério é à luz do sol. Na Acrópole ao meio-dia, com o sol a pino, toda a gente fala em voz baixa. Os próprios turistas, tão exuberantes em Itália, ficam transformados.
A Itália também me maravilhou - mas é diferente. Veneza e Florença são mundos construídos pelo homem centrado em si mesmo. Não são mundos religiosos. Na Grécia tudo é construído como religação do homem à natureza. Em Veneza e Florença a natureza pouco seria sem o que os homens construíram: o que há é cidade. Mas os templos gregos só são compreensíveis situados no mundo que os rodeia. A ligação entre a arquitectura e o ar, a luz, o mar, os promontórios, os espaços é total. E essa ligação é simultaneamente racional e misteriosa, profundamente íntima.
Há também na Grécia uma atmosfera extremamente primitiva, um misto de doçura e de austeridade, de afinamento exacto e de rudeza. E uma identidade entre o físico e o metafísico.
De certa maneira encontrei na Grécia a minha própria poesia «o primeiro dia inteiro e puro - banhando os horizontes de louvor», encontrei um mundo em que eu já não ousava acreditar. Agora tenho o espanto de o saber real e não imaginado. O que eu sabia da Grécia adivinhei-o através de pedras, pinhas, resinas, água e luz. Mas apenas como fragmentos dispersos que a minha imaginação reuniu. Ali encontrei as coisas todas inteiras e presentes na sua unidade. Não estou a falar só de coisas, mas da ligação do homem com as coisas.
Será possível que eu lá volte? Assim espero. E de todo o coração desejo que você um dia lá possa ir. Pois o que ali há, além de tudo o mais, é uma intensa felicidade de existir que nos lava de tantas feridas.
[...]
Não pense que vim da Grécia paganizada. Aliás o paganismo ali não «é nada do que se conta»! Voltei sim mais apta a compreender o Evangelho que São Paulo pregou em frente da Acrópole. Mais apta a compreender toda a vital necessidade de ligação, de religação.
[...]
SOPHIA
In Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Correspondência, 1958-1978 Lisboa: Guerra e Paz, Editores, SA, 2006, p. 64-68.

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