03/06/2007

Uma lei perfeita: a lei da liberdade (cf. Tg 1,25b)

Neste passo procuraremos clarificar a relação entre as noções de liberdade presentes nas Cartas de Pedro (primeira) e Tiago. Para isso começaremos por analisar o sentido que esta última denota, comparando-o, finalmente, com o da primeira (que já fomos vendo).

a) Sentido de liberdade na Carta de Tiago

«Mas o que contempla a lei perfeita, a da liberdade, e nela persiste, não como ouvinte negligente, mas tornando-se feitor da obra, este será feliz na sua feitura» (Tg 1,25).

Que lei é esta que, embora práxica, seja contemplável? A abordagem quase mística da lei remete-nos de imediato para aquele ambiente de memória cardíaca onde a visão guarda nos gestos (que saem daquele músculo decisivo – tão imprescindível à pulsação como à decisão, segundo o entendimento semita [veja-se Xavier Léon-Dufour (org.), Vocabulaire de Théologie Biblique, Les Éditions du Cerf, Paris, 1966, 136-139]) aquilo que lhe vibra no peito. De facto, a lei surge na tradição semita (também) como realidade amável porquanto exprime a íntima relação de Deus com o seu povo (cf. Dt 6,1-9). Assim, a lei evoca aquela obediência amorosa que os amantes (cf. Os 2,16-22, particularmente o v. 21) impõem a si mesmos na demanda do amor excessivo (qual febre de amar…). Aqui a contemplação é necessariamente activa, porque não cabe na vista aquilo que o coração pressente, fervendo numa ânsia que no corpo treme.
O autor da carta refere-se, precisamente, à relação implícita entre o conhecimento da mensagem e o seu cumprimento. De facto, só conhece [veja-se acerca do conhecimento no pensamento semita Ibidem, op. cit., 157] verdadeiramente aquele que actualiza aquilo que o habita.
Mas, que lei? e em que medida respeita à liberdade?
A lei perfeita [cf. 1,25a] – a do reino [cf. 2,8-11] –, de amorosa, implica não apenas uma imparcialidade exterior mas sobretudo uma rectidão interior por que aquele amor se cumpre [cf. 2,10s.]. De facto, é o exercício (ou não) do amor piedoso (diríamos, do cumprimento legal) que diz da observância da lei, e é por ele que seremos julgados [cf. 2,11.13b]. Desta feita, esta lei reporta-se não já a uma régua mas ao coração, onde se decide da autenticidade da relação (consigo, com outros, com o Outro) [cf. 2,8].
A liberdade será, enfim, a própria condição daquele que ama extremadamente (i. é, que age conforme o que conhece). Sendo um amante, o homem livre é aquele que não se cansa de fazer o bem [cf. 2,17.18.22], que resiste pacientemente [cf. 5,10] nas provações, tentações [cf. 1,13s.] e sofrimentos vários, que é humilde e submisso diante de Deus [cf. 4,7.10.15]. Nele, fé e obras não se opõem: exigem-se mutuamente.

b) Relação entre as noções de liberdade presentes nas duas cartas

Tanto na 1 Pe como em Tg, a liberdade parece referir-se ao estatuto, mais, à identidade mesma do cristão. É ela que diz a sua disponibilidade face aos outros – ainda que fora da comunidade – (e, profundamente, ao Outro) que, de amorosa, se permite às dores da paixão. A autenticidade dessa extroversão reclinada será já momento do juízo da própria existência, na medida em que nela ecoa a actualização contemplativa das letras da intimidade com Deus (expressa também no encontro com os outros).
O inovado estatuto do cristão fá-lo livre não apenas diante da sociedade mas ainda dos próprios constrangimentos ritualistas duma religiosidade exterior. Mas tal liberdade não marginaliza o cristão: antes compromete-o com todos e cada um. E essa será a raiz da estranheza cristã: está no mundo debruçado sobre a infinitude. Assim, a autenticidade da vida cristã, embora falando todas as línguas, não poderá ocultar um incómodo desfasamento de sotaque…

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